quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Escrever é domesticar a morte

Por Shyrley Pimenta

Mesmo não tendo o monopólio da iluminação, quando escutamos cuidadosamente a nós mesmos, caímos em silêncio, abatidos pelo peso da descoberta: é complicado lidar com incertezas, mistérios, dúvidas, sobretudo para aqueles de nós que se baseiam estritamente na razão, na aparência dos fatos, na busca forçada por uma paz, semelhante à dos cemitérios. Talvez por isso, o poeta Charles Baudelaire tenha escrito: corremos para nos perder na multidão, por temor de não poder suportar-nos a nós mesmos.

Também por isso, a escrita se revela uma via de salvação. Escrever é evocar fantasmas, relembrar lugares, pessoas conhecidas, amores, amigos. Escrever é uma forma alternativa de conjurar nossos medos. A escrita possibilita tematizar a vida através de palavras e imagens, configurando uma forma de responder às frustrações e derrotas cotidianas.

Escrever é destrinchar a estrutura do real, esse mistério complexo, sutil, pleno de matizes desconcertantes. Escrever é uma forma de lidar com as perdas. É dar cor e voz aos impulsos paradoxais do desejo humano, que ultrapassa os limites do socialmente aceito e conveniente. Escrever é afirmar Eros, a vida, e também seu contrário, Tânatos, a morte. Escrever é reafirmar a verve crítica e libertária, avessa a conformar-se aos interesses menores do lucro, do conforto, das conveniências.
Escrever é metamorfose. É triunfo da vontade, do desejo de ser mais, de criar e experimentar dimensões novas, de si e do outro. Não se escreve por acaso. Por um acaso vazio e sem sentido. Escreve-se por destino. Por uma necessidade intrínseca e profunda de mudança, renovação. Escreve-se para barrar a desfiguração crescente do homem, da natureza, característica da existência moderna, turbulenta, excessiva, veloz e caótica.

Escrever é acercar-se do inusitado, é combinar de modo insólito as palavras para penetrar sem rodeios na alma humana, despidos de quaisquer moralismos, sobretudo daqueles que nos foram introjetados na infância, para aceitar a arte, a beleza da arte, sem preconceitos. Escrever é abandonar a contemplação medíocre da vida bem comportada, para transformar-se num arquiteto do absurdo, do impossível.

Daí a relutância em festejar a autoajuda ou a panfletagem, travestidas de literatura. Só a literatura é capaz de romper o cerco que aparta arte e vida, restituindo o sentido pleno às experiências vividas, aproximando-nos do fascínio da natureza, a ponto de desejarmos nela dissolver-nos (afinal, é esse nosso destino último), como diria Cesare Pavese (1908-1050): “Eis-me pedra, umidade, fumaça, sumo de fruta, vento...”

Escrever é selecionar palavras carregadas de destino. É evocar a longínqua infância, única idade verdadeiramente humana e autêntica, porque faz do amor o peso da existência, núcleo remoto de sentimentos, de fantasias, “cujos fogos só se iluminam bem sob o luto fechado da noite”, diria Baudelaire. Entretanto, a infância é apenas um instante vertiginoso que cintilou, brevemente, e se perdeu no tempo. Mas escrever é auscultar esse tempo perdido, é uma forma de lançar à existência um demorado olhar clínico, é a arte de contrapor-se, com coragem, a qualquer projeto de aniquilação, fruto da crueldade humana. Escrever é domesticar o medo. Escrever é domesticar a morte.

Shyrley Pimenta é psicóloga clínica
Fonte: Jornal Correio de Uberlândia - 31/08/2010
http://www.correiodeuberlandia.com.br/?tp=coluna&post=20761&uid=37

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